segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Moça


Entrou, retilínea, no recinto. Os passos, esparsos, quase falavam por si. Procedeu o intuito,  e "ai que dó" de quem não a notasse. De ofício, assumiu a pesada responsabilidade da antipatia e rasgou, a grosso modo, o clima sem raça do ambiente hostil. Coerente aos pontos cardeais, a cabeça erguida proporcionava uma visão mais justa. Foi questionada com olhares. Foi julgada por juízos de estimação. Focou no epicentro e de bom dia ofereceu um sorriso injustificável. Ninguém se mexeu. Ninguém atravessou o caminho. Estavam todos com muito receio de pisar no rabo do bicho. Obrigatoriamente, mesmo se ela estivesse ausente, seria percebida. Menina insensata essa. Entrou, ficou dez minutos e saiu, causando (com que direito?) tormentos mentais nas pobres criaturinhas. Sujou as mãos por ser quem era. E saiu, de batom vermelho, no estilo humor negro. 

Lia Clarisse, e portanto sabia que a liberdade ofende.

domingo, 14 de setembro de 2014

Elegância da dor


Não despreze sua dor. Não menospreze as lágrimas que irrigam suas expressões. Você precisará de cada uma delas para matar sua sede de proteção e imunidades. Vacinas são feitas com o próprio vírus e a mão só caleja depois de sangrar. Isso não é um consolo, você vai ter que aceitar. Respire fundo e aguente, caso contrário, aguente sem ar. Você pode até procurar ajuda, mas cuidado para não banalizar a si. Tenha sempre as pessoas certas. Respeite seu luto. Tudo é fase sim, e essa talvez seja a mais importante. Ame o silencio característico que vem para brindar e que estará constantemente contigo, até o dia em que houver readaptação. Se não existir sofrimento você jamais poderá trajar sabedoria nem, tampouco, mérito. So é feliz quem já sofreu. Só é inteiro quem já sofreu. Só é digno de suas convicções quem já sofreu. Confie no seu poder de superação porque esse é um condão precioso da vida e é, ao mesmo tempo, o único lastro de justiça capaz de aliviar. Seja alguém de verdade, ame a sua existência e absolutamente tudo o que isso inclui. Isso se torna uma tarefa fácil quando confiamos na vida como algo cíclico. Tudo faz sentido, sempre. A dor que entranha e sufoca é a mesma que remedia e constrói. Deixe que ela entre, fazendo o serviço, e nem por um instante aceite que sintam dó de você. Não sentimos pena de quem admiramos. Levante, disfarce e faça um curativo. Tente absorver a elegância da dor e tirar todos os proveitos. Não se acovarde. Quando anoitecer, já cicatrizou. É a dor aquela cláusula máxima para que se tenha o direito de experimentar todos os sentimentos do mundo. Pague o preço e garanta uma vida de valor.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Prazer, Eu.


Eu morei naquele abraço. E embora a terra relativamente infértil não sugerisse eternidade, eu morei lá. Quando fui convidada, a recusa não fazia parte dos meus planos. Recusa pra mim é algo contraditório demais pra quem carrega consigo a pretensão de que tudo é espera por novidades. De que o mundo é anseio e apostas. Eu morei naquele abraço, naquele espaço, decorei ele todinho, dancei em cada metro quadrado. E lembrando da minha aparência no passado, dias e meses atrás, meu cérebro só consegue formatar a beleza magnética e inevitável daquele moça corajosa. Entrei e nem pedi licença. A porta estava entreaberta (nenhuma porta nunca esta totalmente fechada pra mim) e eu abri, arreganhando num empurrão só. Agora, vejo a mesma porta e em pé diante dela (ainda do lado de dentro), encho o peito de ar para fechá-la com um sopro. A força da minha sutileza sempre suportou melhor os pesos. (Sim, um sopro!). A batida é previsível e se é previsível não promove maravilhamento. Eu vou soprar agora. E quando eu estiver do outro lado dessa linha divisória, eu certamente verei a tranca fincar, em câmera lenta, e darei um sorriso "de boca". Conhece? Eu darei aquele sorriso expressivo que você tentava desvendar. E vou me virar, dando as costas sem me boicotar por isso, carregada de experiências, sabores e invasões. Levarei você comigo numa realidade abstrata, num plano espiritual, numa sensação inconsciente... sei lá. Acho que talvez eu te leve nas mãos. Nas mãos porque você se acomoda melhor em lugares palpáveis, concretos, controláveis. Coração é prisão e a mente um lugar cruel que eu não daria a você, querido. Mas nas mãos é o lugar ideal porque ao longo dessa história eu nunca as lavei, talvez por lembrar sempre dos nossos ajustes e da nossa concepção de sabedoria em meio a essa embriaguez. Eu Mercúrio, e você Vênus. O seu abraço foi a última e melhor casa da cigana que eu quis experimentar ser. A casa ausente de base, cálculos, prestes a desabar em morte. E só de imaginar que podíamos morrer a qualquer milésimo, certifico aqui a experiência inebriante e válida. E sempre enquanto esperávamos os escombros, éramos perdoados com as pequenas mortes diárias. Com os golpes de faca diferidos dessa guerra de egos afiados e almas quentes. É fato o que fomos e é corpóreo o laboratório resultante do nosso duelo de gigantes. Não me entenda mal e nem me julgue consciente demais ou fatídica. Fatídica é diferente de fatal e foi disso que você me chamou - com os olhos - no último encontro. Fatal. Porque, a grosso modo, não tem nada mais convincente do que o desafio pessoal de lidar com o que nos mata. É esse o preço mais alto a pagar para provar a si, não é? E eu não estou falando de tragédias ou desgraças. Pois bem. Sem empates e sem antídotos. Moramos em nossos abraços e nos alimentamos das nossas consciências. Crescemos. Eu cresci. E não caibo mais nesse abraço pequeno. E eu, consigo alargar meus braços e abraçar o mundo. Mas você... Você não! Porque sou eu quem escolho o tamanho dos meus braços enquanto os seus já estão metaforicamente amputados. Sinto, mas metáforas limitadas não servem para a plenitude do meu poema. Prazer, Eu.

sábado, 2 de agosto de 2014

Au Revoir


- Seis horas de uma manhã de plumas.

Vejo ela partir. Porque ela tinha de ir, assim, sem avisar? Sem objeções, ela saiu de onde estava, rumo ao... sentido da vida? Ela sempre me disse que quem anda pra frente contempla o sentindo da vida. E para frente sempre foi o caminho mais difícil de ser explorado. Saiu sem pentear os cabelos, vestida de vento, com os pés descalços. Eu já não podia fazer mais nada e vê-la indo de costas era como ver um horizonte distorcido, cheio de lonjuras e despedidas. Escorrendo, ela ia, pelos meus dedos, feito areia fina roubada de uma ampulheta. Mas eu sabia. Sim, eu sabia que a contagem seria sempre regressiva. Sempre decrescente. Indecente, devastadora... 

- Três horas de uma tarde esquecida.

Ela tinha mesmo deixado seus devaneios pra trás, e todos os seus demônios. E agora eles me faziam algum tipo de companhia, se posso assim dizer. No corredor haviam espalhados alguns poemas dela, escritos em época de Bossa. Num deles, li:


De áurea luxuosa e livre
Sou mulher de versos
Que nunca couberam
Numa redondilha menor 


Agora, só restava o cheiro diluído e quase imperceptível. 

- Meia noite de uma noite sem luas.

Ainda despedindo, vejo-a disforme, já noutro mundo, como uma miragem. Como o oásis do deserto que ela deixou aqui. Eu poderia ir com ela, mas a moça era autêntica demais. E eu, fincado, observava pela última vez a silhueta, que a cada passo se transformava em nuvem, e que em pouco tempo choveria, matando poucos e bons afogados.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Vago


Ora, mas ninguém me disse que precisaria ser explicado. Consigo ver algumas pessoas andando de um lado para o outro, outras vestindo cores simétricas ou bebendo café e ainda, algumas outras quietas e absortas logo ali, em poucos passos. Mas não, ninguém me disse que precisaria ser explicado. Entendo, por bem, sentar nesse lugar desconfortável para apreciar, de onde estou, não sei o que. Vejo alguns flashes, escuto ruídos, sinto o sabor da minha paralisia proposital e ninguém me contou que precisaria ser explicado. Agora, já é fim de tarde e estou cansada do excesso da falta de excessos e tudo que tenho aqui é essa obra de rimas primitivas e páginas descompassadas. Já li. Mas eu não sabia que precisaria ser explicado. Sibilo uma música memorizada e se eu erro o ritmo não importa. Na minha frente alguns carros passam, crianças sonham e sonhos enfeitam o movimento da Terra, e ninguém nunca me ensinou que tinha de haver explicações. Se eu confesso meus suicídios mentalmente, acho graça. E não explico. E continuo aqui, pois. Ativa e passiva da melodia que os outros ouvidos assassinam. E não há o que explicar. Para quem não entende infinitos ocultos, tudo parece vago.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Dose



Hoje eu quero pingar uma gota de intuição nos meus olhos. Andar pelo mundo, falar com o escuro, contaminar o bando. Hoje eu quero a sabedoria dos irracionais, o perfume dos imundos, quero um violão só de nota dó. Hoje eu quero um vestido azul poético, quero estampas sobre signos, quero arrastar os móveis e me abster de três fatias do mundo. Hoje eu quero ser viajante. Errante. Feliz. Quero ser os pés do outono, as cores de Frida. Andante. Infinita. Quero ser imortal. Quero ser igual a mim. Hoje eu quero esparramar minha fala nas mãos. Ultrapassar. Meditar. Ficar nua. Hoje eu quero ver pessoas desfiguradas. E quentes. E gente. Todas expostas ao sol. Hoje eu quero ser cigana. Profana. Mundana. Quero ser todas. Hoje eu quero permitir tudo o que me revela, descobrir tudo o que me refaz, seduzir meus medos. Amar, desejar, fumar. Hoje eu quero café. Acúmulos. Peçonha. Insônias e acasos. Hoje eu quero escrever poesia na fumaça do meu último cigarro. Na fumaça do meu vulto. Na fumaça do meu reino. Hoje, especialmente hoje, quero uma lua tóxica e sem preconceitos. Quero fazer gestos obscenos. Quero amar o sal do mar. Hoje eu quero sujar os pés e manchar o céu de tinta. Diluir os limites. O perigo. Ir além. Ali. Assim.
 Hoje eu quero dizer amém.
Só por hoje.



quarta-feira, 30 de abril de 2014

Sobre o tempo


Escorre pelos olhos o tempo que não aprendeu o caminho de volta. Tudo vai mudando, em pequenos pedaços, e você nem se deu conta. O sol já se pôs e essas mudanças beijam o rosto da oportunidade. O sol nasce, noutro dia que aponta nos relógios, e está te dando de bandeja todo esse calor. As coisas são bonitas porque não são eternas, assim como o outono capaz de despir todas as árvores e conseguir fazer poesia ao levar as flores consigo. Ele passa porque, afinal, tudo passa. Não há outra vida em nós, não agora. Talvez haja outra vida por aí, em alguma rua desconhecida. Mas nesse instante, o tempo passa. As palavras viram vento, o pecado vira virtude, as moças transformam-se em estações e a gente se perde nesse brincadeira de "era uma vez". Somos donos do nosso tempo, desde que saibamos disso numa constância suficiente para não traí-lo. Tempo é algo precioso e o passar dele também. É o pai das prioridades, o rei das escolhas, o senhor das obrigações. Um mágico que transforma o malfeito em borboletas, o disforme em experiências. Um comandante honesto da vida, que nos apresenta a morte em diárias doses suaves e nos remedia com o cotidiano cômodo e com uma ordem vital básica. A anestesia é, então, a imortalidade aprazível do melhor momento do dia. E do outro. E de todos. E mesmo que continuemos vulneráveis ao inevitável, aprendemos a encher as fases de paixão. O figurino de cada momento finda o luto, e o ato de vestir a camisa é sábio demais. Há fases que compõem, fases que vêm anoitecidas, fases que falam de amor, fases com um bocado de vida... fases que fazes: linhas tênues invisíveis do tamanho do mar (que também é uma fase). E por causa do tempo os verbos têm conjugações. E por causa dele, as frutas amadurecem, esquecimentos acontecem, há possibilidades de colheita, os parques ficam mais verdes, a realidade se desvencilha das prolixidades e te liberta das ilusões. A gente conversa mais manso, fala "não" com mais facilidade, desvenda a felicidade, comemora aniversários e luas. Quiçá, cometemos desperdícios, por valer a pena. Mais um minuto, horas de areia e outro gole de café. Segundos de um breve estar: há estrelas no céu que vão acabar. Existência maciça dos meus recortes de eternidades para eu guardar no meu maior bolso. Porque eternidade são fotografias, sabores, lembranças. Eternidade é o que abraça a alma enquanto o tempo se encarrega de ajustar as benfeitorias da nossa história que passa depressa por debaixo dessa saia florida. Tempo é o escorre silenciosamente pelos dedos, calejando-os. É o ingrediente que faz acaso quando toca o espaço. E eternidade é o que fica desse tal de tempo, que foi-se como foice.




"És um senhor tão bonito, quanto a cara do meu filho... Tempo tempo tempo tempo,  vou te fazer um pedido. Tempo tempo tempo tempo (...) Compositor de destinos, tambor de todos os rítmos... Tempo tempo tempo tempo, entro num acordo contigo. Por seres tão inventivo e pareceres contínuo, tempo tempo tempo tempo, és um dos deuses mais lindos..." 

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Luz. Câmera. Ação!

"Que as atitudes renovem o poder das palavras. E que a palavra volte a ser novamente atitude."(Carpinejar)




Sempre associei inércia à doença. À alguma espécie de enfermidade física ou aos inúmeros tipos de doenças psíquicas. Algum trauma, fraqueza, rastro de insegura, à doença do medo, à doença que renuncia a auto-confiança. A política da opinião abstrata inunda de conforto consciências que não sentem mais a necessidade de se positivarem através de atos, riscos, acertos e erros. Ter opinião é fazer opinião. Muito "se fala", muito "se acha" e muito "se critica" nessa sociedade convencionada a ser humildemente escondida. Mas poucos se comprometem. Eu nunca entendi essas escolhas e perspectivas que fazem-se nulas diante da consensualidade humana. Eu nunca entendi o padrão mundano capaz de tolher o instinto de ação e posicionamento, o instinto de mudança, a vontade de tornar a vida mais digna a partir das próprias pernas. Atitude é, definitivamente, a palavra do século. É a retaguarda da ascensão, porque só há progresso quando há movimento. É a preliminar da notoriedade, da aparição, do reconhecimento ou até mesmo do julgamento alheio. E isso é importante, porque te torna peculiar ou, no mínimo, lembrado. O anonimato é prerrogativa de fraqueza e de temor, e a omissão é a admissão da mais nítida inutilidade e incapacidade de ser, manter, estar, falar, construir ou reconstruir. Nos tornamos quem somos, buscamos o que queremos, arcamos com as dificuldades e consequências de uma vida ativa e válida. Somos o que fazemos continuamente e só conseguimos mudar a realidade quando aplicamos a dinâmica da inquietude em nossos planos e apostas. Poucos se importarão com o seu modo de pensar, mas muitos poderão abraçar a sua causa quando ela existir como algo semeado que partiu de você, de um jeito material, real. Ação é efeito. É confronto. É o poder de produzir reações, logo, cadeias de ações que fazem o mundo funcionar. É ser honestamente merecedor das conspirações favoráveis do universo e do futuro que reflete seus indícios. Temos que estar preparados para dar o primeiro passo. Nos permitir na medida das nossas limitações pessoais mas com a evolução espiritual de confiar que tudo é instrumento para o nosso melhoramento. Que ação é o mais robusto grito de guerra. Que dar a cara a tapa é pressuposto para grandes conquistas. Que chafurdar nos conflitos não vai tornar nada menos desconfortável ou mais solúvel. Quem não atua, não vive em paz, porque a alma anseia participação, a poesia quer andar. Temos que compreender até onde aceitar é bom, até onde concordar é eloquente. Até onde subscrever faz feliz. Sempre acreditei em destino, mas nunca deleguei à ele minhas responsabilidades, nem jamais, a autenticidade dos meus sonhos. Tornem-se a própria atitude porque sua vida é sua obrigação. Simples e lógico. Quer matar a sede: busque a água. 

domingo, 30 de março de 2014

Amor


Entre todas as formas de insegurança que as pessoas conseguem expor instintivamente, o "eu te amo" é a que mais me intriga. Não que os levianos me ponham em um auto questionamento, mas o outro lado da história me faz refletir: a franqueza, a liberdade e a lisura que revestem esse sentimento quando sentido por pessoas bem resolvidas emocionalmente. Essa preciosa exceção aos "pseudo-amantes" é o que me faz ter no bolso uma irrenunciável esperança de que o nobre e decente amor não morra na boca desses corações frouxos. Amor, não é pretexto para a mediocridade de uma vida, não é vingança contra a realidade, não é refúgio e, tampouco, é a cura para a inércia ou para a ansiedade. Amor não é casamento e não é nenhum outro rótulo "confortável" porque amor nunca foi status social. Não é ímã, não é Freud, não acolhe os conceitos pretensiosos e preconceituosos da nossa doença cultural. O "eu te amo" é uma frase tão idealizada, que quando dita toma o corpo da suficiência e encerra o assunto. Mas o que há por trás? O que há nos próximos cinco minutos? O que haveria se não fossemos tão frágeis? Tão covardes por natureza?
Demonstração de amor exige um universo além da frase mágica. Exige aceitação, interesse, zelo e a liberdade do mundo inteiro. É um sentimento-situação digno de qualquer forma de instalação, salvo o da pobreza de espírito. É uno, múltiplo, temporário, eterno, peculiar, não cabe num manual de procedência, não cabe nos diminutos aspectos físicos, não cabe nesse texto. 
Amor não é programação biológica, não é paixão, não é promessa. Não é bônus do status quo e não é ingrediente para agregar valor às relações. Todos os dias vejo como as pessoas têm medo de assumir a real definição do tipo de ligação que sustentam em suas vidas, umas com as outras, tornando o amor uma amenidade, um desencargo de consciência. E não é. Agora, jogar esse sentimento tão insigne nas mãos de uma sociedade superficial e oca é uma responsabilidade muito grande, um risco mortal. Uma sociedade que sabe que é "amada" só porque foi dito, só porque está acostumada com a verbalização de tudo e evidentemente isso basta. Só porque aprenderam a administrar muito mal a solidão. Só porque é uma sociedade suprida por uma anuência coletiva sobre as coisas, que são como são porque alguém disse e ponto final. Uma sociedade que segue regrinhas limitadas, castradoras do livre arbítrio de sentir verdadeiramente. Sente-se amado quem antes de tudo, sabe o que é isso. Quem sabe que amor não é antônimo de infelicidade, quem sabe que amor não é antônimo de infidelidade, que não é sinônimo de auto renúncia. Quem sabe que amor não mata, porque não é veneno. Que não tem forma, apenas hospedeiro. Quem sabe que amor é consciência. A gente doa, cede, estica, muda os móveis de lugar, cuida, canta, chora, faz planos, abraça, pede opinião, pensa, fala, escuta... mas não esquecemos quem somos e do que gostamos. Não esquecemos que antes de amar alguém, precisamos nos amar. Amor é transgressão, as outras coisas, convenção. Amor é sorte, o resto é manipulação. Amor é divino, o resto é normal. Amor é sentir-se seguro, o resto é sentir-se bem. Amor é poder tudo, o resto é comportamento. Amor é liberdade, o resto é proibição. Amor não é cafona, não sai de moda... o que sai de moda é a situação. Cada sentimento é cada sentimento. Amor, é tudo.
"Eu te amo" não significa nada. Dito por dizer, é coisa de gente medrosa, carente, mal resolvida ou (nos casos mais inteligentes) coisa de gente sedutora e vaidosa. Há (ainda) quem ame de verdade, e para esses: amor eterno! 

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Cais


Sou matiz de uma obra do último infinito. Soo no eterno que já se foi e na brevidade do "para sempre" que refuto de acordo com as exigências do meu bel-prazer. Soo no tempo, na cura, no universo do que me significa. Moro no espaço do mundo, no espaço da minha efígie, no espaço da primavera das minhas flores-internas. Sou filha de todos os santos, protegida e abençoada pela confiança que sopro nas coisa em que creio. Sou mãe de algumas saudades fáceis e amiga leal das minhas dores mortais. Ando descalça na praça, na brasa, na poeira, na navalha, nos sonhos. Sou apaixonada pelo mundo comum que eu interpreto e pelos passos errados que trago na pele. Sou o que forte fica, a voz que eis, a coragem da auto-recepção. Sigo destituída de todas as coisas, menos de coragem e fé. Em passos que gritam, corro incansável até encontrar a linha do horizonte. Aprendi com a chuva como lavar a alma e como regar minhas entregas condensadas no hoje-sempiterno-desmedido-fugaz. Começo a existir no acaso de mil sentidos e no ímpeto de um mar. Termino na reviravolta de eus meus. Viva ou morta, quero sempre estar comigo. Não uso mapas, aspas, circunstâncias ou sintaxes... por isso amanheço em mim para que eu me oriente sozinha. Acredito que quando promovo meu próprio norte, me permito verdadeiramente. Meu mundo é cheio de luz, lis, anos-luz, Zodíaco e Saturno. Rasguei meu código de ética nos dentes, porque não mendigo aquiescências, não esqueço de me parecer comigo. Acolho, despeço, acendo meu isqueiro, entrelinho meias metáforas das línguas de qualquer poeta. Nasci para ferver sal no mel, para gerar quiçá com Umas e Outras de Chico Buarque. Nasci com a fúria de uma ideia azul e com a paz do meu caos. Não rejeito a necessidade dos alívios que invento, não tenho problemas com o conjunto que me denota e não censuro meu corpo: minha nudez vem de dentro. Me perfumo com uma poesia ressonante e atravesso a porta, cheia de detalhes impronunciáveis que trago no sangue, cheia de pressentimentos inconclusos e próprios de quem tem atrevimento para viver, seja lá como for. Sei que meu cais sempre desemboca nas vésperas de mim.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Somente


Por favor, quando chegar abra a porta num impulso. Esbarre em mim sem precisar pedir desculpas e me acomode dentro de ti, como o melhor cumprimento. Não temos tempo, deixe a cena nos vestir. Arrepie meus pensamentos. A voz da nossa conversa mental sussurra o desate. Derrama em mim o que emudece, que de mim transborda o que desamarra. Feche os meus olhos por conseguir traduzir minha visão nos seus toques. Nosso terreno é a invasão. Vem, e só me convide pro agora, que é onde fizemos morada. Vem inteiro, vem meu, vem úmido, vem paladar no que eu faço. Chegue e me ocupe. Os ponteiros dançam... não te peço tempo, eu quero a plenitude de meio relógio pequeno. Então, decida vir com aquele abraço que me veste na melhor seda. Chegue e não meça nossos excessos. Acenda meu cigarro, borre meu batom, me impeça de lembrar meu nome. Chegue e faça paisagem na alça caída do meu vestido. Me tire de casa. Vem despencar as estrelas do meu céu... vem me mostrar seu talvez. Vem me achar bonita e revelar labirintos no meu ouvido, me perder e só me encontrar dentro do assalto daquele seu olhar fixo. Somente. Chegue pleno, livre, solto. Sinta o aroma das palavras sem apego ao contexto e ao instrumento. Delicado, voraz, eloquente, estampado ou tranparente, mas sempre despido do mundo e da sua ultima estação. Toque no que é abstrato. Me traga aquele sorriso que não me deixa recuar. Me traga voltas. Quero um cativeiro momentâneo, quero atravessar a sanidade, mudar de ideia. Quero sussurrar que quero. Me traga um substantivo sem verbo. Um som, um vento, uma fumaça no ar. Me traga um corpo quente, uma dose de desejo, seu melhor beijo. Ainda é hoje!
Chegue para descobrir o que será permitido. Não tenho tempo a perder, me ponha pra dançar. Me relembre nós. Vez ou outra, meu mundo se veste com um paletó... e então, tudo o que eu quero, é despi-lo. 

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Nosso



Arrepiada, desafio o frio assim que decido vestir minha última moldura de lã. Agora somos só eu e essa página nua. Há beleza nos meus gostos, na minha alma, no meu gozo... talvez porque ainda pulse quente. Sei que a beleza flui desse tanto de tudo que me apronta para coisa nenhuma. O apetite. A eternidade do agora. O viés de um dia que deixa digitais insistentes e doces. Tenho me acostumado a ver a beleza mais crua nesse espírito volátil onde nem o erro é desperdício, onde o olhar aceita carícias, onde evidente ambição é não querer. Eu gostei quando pude rir (instintivamente) das armadilhas da música que tocava no meu rádio enquanto eu andava por aí. No cardápio: nossos corpos musicalizados. Gostei quando o semáforo mudou de cor e eu ainda estava lembrando de nós... de como temos a idade das nossas vontades. Tenho inventado paisagens na minha parede. Tenho respirado tranquila: está tudo bem aqui... meu tom alcança sua nota. E dançamos em meio centímetro. Camuflada de vida, te visto. E despretensiosa, te caibo. Me lanço corajosamente nessas palavras recém chegadas, porque uma vez despida, essa página - agora escrita - será o adereço mais belo para minha nudez. É assim. A calma da chegada é o artifício da urgência. Tocar aos poucos é o álibi para a admissão das querências indefectíveis. Ecoa em mim um rascunho firme do cheiro sem título que a gente inventa. Tem sido assim. Profusões celebradas... uma bagunça arrumada, mãos que conduzem os inversos, corpos despertos que afundam. Assim. Atravessado, reinventado, abraçado, descaminhado. Lembrado pelo silêncio. Onde a menor delícia não cabe no mundo. Do lado de cá, a sombra de tudo o que é belo anoitece meu sono. Nos sinto! Cartas de baralho do nosso jogo de soslaio. Bem sabemos, eu aposto.